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A Nova Lei de Abuso de Autoridade

Prestes a entrar em vigor, a nova Lei de Abuso de Autoridade – LAAU, Lei nº 13.869, publicada no dia 5 de setembro de 2019, após mais de meio século de vigência da antiga Lei de Abuso de Autoridade, Lei nº 4.898/65, instituída em pleno regime militar, à primeira vista se propõe a modernizar e efetivar as garantias e os direitos individuais face aos abusos e excessos praticados pelos agentes do Estado contra o cidadão comum.

No entanto, aos olhos mais atentos e críticos, a lei embute amarras que dificultam a investigação, a repressão e a punição dos agentes que cometem ilícitos de toda ordem, e pior, invertendo os valores, pune justamente aqueles que têm o dever legal de coibir essas condutas. Por esta razão, na prática, embora entre em vigor somente a partir de 03/01/2020, a LAAU tem provocado alvoroço e gerado um indesejável clima de insegurança jurídica desde a sua publicação.

Numa rápida leitura aos artigos que compõem a LAAU pode-se entender o porquê dessa situação, pois alguns dispositivos destoam nitidamente daquela imagem idealizada que se tem da lei em razão do seu objeto – combater o abuso de autoridade – e mais se assemelham a uma autotutela preventiva para a prática de desmandos e desvios de conduta pelos agentes do Estado, especialmente os agentes políticos e aqueles com quem mantém relação, deixando em segundo plano a legítima preocupação com a integridade dos cidadãos.

Consequência disso é que diversas entidades representativas de classe, especialmente dos magistrados, dos auditores, dos promotores e dos delegados de polícia já se manifestaram por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) perante o Supremo Tribunal Federal (STF) questionando a constitucionalidade de diversos artigos da lei em comento.

Curiosamente, boa parte dos artigos questionados havia sido vetada pelo chefe do Poder Executivo, mas posteriormente foram “derrubados” pelos congressistas, reforçando o sentimento de que de fato antes de destinarem-se à preservação da integridade do cidadão comum, visam criar uma espécie de proteção jurídica dos próprios legisladores, de outras autoridades e de personalidades de destaque social diante de eminente ou eventual investigação criminal ou ação judicial, conhecido como “blindagem”, embora acabe por privilegiar criminosos comuns.

Exemplificando o que até aqui foi dito, alguns juízes já tem fundamentado suas decisões com base na LAAU, seja para conceder ou negar direitos, alguns casos extremamente polêmicos que geraram repercussão nacional, como o da juíza da 4ª Vara de Entorpecentes do Distrito Federal que durante a audiência de custódia determinou a soltura de um preso em flagrante de tráfico de drogas ao argumento de que a manutenção da prisão poderia ser tipificada como abuso de autoridade.

Noutro caso, na esfera cível, a juíza da 5ª Vara Federal de Brasília negou o bloqueio de bens requerido pelo credor alegando insegurança jurídica para determinar a medida em virtude do receio de vir a “responder a processo na seara penal”, em decorrência da LAAU. Indo além, protestou contra a lei nos seguintes termos:

Um judiciário fraco, que não possibilita ao magistrado garantir a efetividade dos julgados, atinge todo o sistema judicial, todos os jurisdicionados, e todos aqueles que vivem dignamente da advocacia profissional diária”.

Consequência disso é que tramitam no STF 05 (cinco) ADIs sobre o tema, todas de relatoria do Ministro Celso de Mello, o atual decano da Corte Suprema. São elas: – ADI 6234, da ANAFISCO, que representa os auditores fiscais dos municípios e do Distrito Federal; a ADI 6236, da AMB, que representa os magistrados dos Estados; a ADI 6238, promovida em conjunto pelo CONAMP/ANPT/ANPR, representando os membros do Ministério Público, Procuradores do Trabalho e da República ; a ADI 6235, da AJUFE, dos juízes federais; e mais recente a ADI 6266, da ADPF, que representa os delegados de polícia federal.

Compulsando o conteúdo dessas ADIs, constata-se que alguns artigos são recorrentes, como o polêmico art. 9º, que havia sido vetado, cujo alvo são os magistrados e delegados, segundo o qual caracteriza abuso de autoridade “Decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais:”, bem como deixar a autoridade judiciária dentro de “prazo razoável”, de relaxar a prisão manifestamente ilegal; substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou de conceder liberdade provisória, quando manifestamente cabível; ou deferir liminar ou ordem de habeas corpus, quando manifestamente cabível.’”.

Outro dispositivo que suscitou reação por mais de uma entidade (AMB, ANAFISCO e CONAMP/ANPT/ANPR) foi o art. 27, que tipifica como abuso de autoridade o ato de”Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa”, embora preveja uma excludente genérica quando”se tratar de sindicância ou investigação preliminar sumária, devidamente justificada.”

Modo geral as entidades convergem no sentido de que a lei ameaça a liberdade e a autonomia dos agentes públicos incumbidos de fiscalizar, investigar, processar e condenar criminosos, por criar tipos genéricos e subjetivos que deixam a interpretação dos atos do agente ao alvedrio do julgador.

Para além, acusam a LAAU de criar obstáculos para a sobrevivência da Operação Lava Jato e seus desdobramentos, o que representaria um inaceitável retrocesso no combate à corrupção no país.

Concluindo, a novel Lei de Abuso de Autoridade nasceu sob o estigma da polêmica e da suspeita de ter sido forjada sob medida para facilitar a ação de criminosos, especialmente dos escalões mais elevados da vida pública, e não para defender o cidadão comum dos abusos dos agentes do Estado, objetivo esperado por uma norma gestada sob o império do Estado Democrático de Direito, que pretendia se contrapor e superar a norma revogada herdada do regime militar.

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