Desde o dia de ontem, a partir de uma matéria veiculada no Jornal “O Estadão” com abordagem crítica e polêmica acerca da tentativa de consolidação das leis gerais nacionais das Polícias Civis e Militares , o país se vê absorto em um temor generalizado e infundado quanto à regulamentação infraconstitucional pela União de sua prerrogativa legislativa de estabelecer (finalmente após 33 anos) uma Lei Geral das Polícias Civis.
Lamentavelmente, inúmeras manifestações na imprensa nacional moldaram o debate e análise do tema sob premissas totalmente equivocadas e com um verniz estritamente político, sem racionalidade, equilíbrio e checagem adequada do contexto. Não se prontificaram sequer a ouvir as entidades de classe envolvidas na discussão, preferindo-se o alarde polarizador que tragicamente permeia as discussões dos problemas nacionais nestes tempos.
Destaca-se inicialmente dentre uma sucessão de erráticas interpretações uma alegada “conspiração política” que cerca o tema da Lei Geral das Polícias Civis, como se houvesse uma demencial conexão deliberada e obscura para reduzir “poder dos Governadores” e amplificar um potencial uso das Polícias Civis para uma tentativa de golpe em 2022, ou ainda criar “descontrole” ou gerar “prejuízos ao Pacto Federativo”. Aqui, vale uma ressalva esclarecedora: nada mais vergonhoso e populista que atrelar de forma arbitrária o pensamento político de integrantes de forças policiais a esta ou aquela ideologia , quando vive-se em uma democracia e a complexidade e pluralismo político são por óbvio vigentes em qualquer agremiação ou instituição. A ADEPOL DO BRASIL, por exemplo, representatividade maior dos Delegados de Polícia em nosso país, dialoga e valoriza a interlocução com todo espectro político e partidário, com isenção e racionalidade, sem proselitismo.
Neste contexto, ressalte-se que não é favor ou concessão política do Governo Federal o exercício da prerrogativa constitucional de a União Federal legislar sobre as Polícias Civis na definição de normas gerais, conforme expressamente previsto no artigo 24, XVI, da Constituição Federal. Trata-se de obrigação constitucional derivada, insculpida pelo legislador constituinte e até hoje não cumprida, com reflexos nefastos ao funcionamento regular das Polícias Civis no Brasil, as quais encontram-se sucateadas e sem investimentos minimamente adequados, apesar da superação da imensa maioria de seus heróicos servidores que diariamente elucidam e prendem criminosos e infratores penais. Portanto, ao contrário das equivocadas e lamentáveis manifestações de alguns, não há inconstitucionalidade no poder-dever da União Federal em finalmente , através do Congresso Nacional, prover as Leis Gerais das Polícias Civis e Militares. O que persiste justamente é uma realidade de omissão inconstitucional, uma realidade de “estado de coisas inconstitucional” desta matéria, uma grave omissão legislativa não suprida desde 1988.
Vale frisar que ainda não há um projeto de lei atual definido e encaminhado pela União Federal ao Congresso Nacional, tendo em vista a necessidade de consenso entre as entidades de classe envolvidas e setores institucionais. Os projetos de lei existentes na Câmara dos Deputados não tramitaram por dificuldades específicas de equacionamento de alguns dispositivos, face a complexidade da matéria.
Não há no conjunto preliminar de idéias do texto qualquer subtração da prerrogativa de escolha de Governadores em relação aos Delegados Gerais das Polícias Civis, bem como sua destituição. Entretanto, inspirado na prática bem consolidada de escolha dos dirigentes das agências reguladoras e do Ministério Público, há a previsão de critérios desta escolha política pelo Governador, como nomeação dentre Delegados de Polícia de classe mais elevada, com reputação ilibada e apresentação de um planejamento estratégico com indicadores objetivos de gestão e produtividade que fortalecem uma administração pautada pela eficiência.
Muito menos há previsão de aumentos salariais vinculantes aos Governos Estaduais e em inúmeras disposições preserva-se a competência suplementar dos Estados no exercício de suas autonomias administrativas. Não existe, pois, a insanidade de se propor ideias que violem o Pacto Federativo, até por ser este uma cláusula pétrea constitucional.
Da mesma forma o que se pretende regulamentar são padrões e parâmetros gerais de organização institucional nas Polícias Civis, com a definição geral de atribuições do Delegado Geral, Conselho Superior de Polícia Civil, Corregedoria da Polícia Civil, formatação das unidades de inteligência e da Escola Superior das Polícias Civis, com regras objetivas e transparentes. Ademais, a previsão de normas gerais organizacionais fortalece a construção de uma cultura e doutrina de investigação integradas e alicerçadas na integração nacional entre as Polícias Civis, além de se normatizar princípios institucionais que adequem as Polícias Civis ao Estado Democrático de Direito e que sejam necessários a uma instituição policial moderna e voltada à coletividade.
Assegurar, por exemplo, autonomia operacional e administrativa às Polícias Civis é um vetor que deve guiar não somente os seus servidores, mas toda a sociedade, já que polícia é uma atividade técnica e não política em essência. Ao contrário: forças policiais guiadas por interesses políticos geram descontinuidade de programas, represálias e intervenções personalistas, uso discricionário de questões sensíveis e, pior, interferências que a posteriori se revelam antagônicas ao interesse público. Ressalte-se que tal autonomia em nada se choca com o controle externo do Ministério Público constitucionalmente previsto ou com a soberania estratégica dos Governadores no exercício de suas prerrogativas mandatárias como Chefes do Poder Executivo dos entes federados estaduais. Ao contrário, definir autonomia às Polícias Judiciárias fortaleceria os mecanismos de controle e um aperfeiçoamento do sistema de freios e contrapesos na atividade policial.
Deve-se perguntar àqueles que associam o tema a fatores ideológicos se Polícias Civis, quando comandadas de forma personalista por Governadores de Estado, submetidas a controle político protagonista e atreladas a interesses de Governos efêmeros resultaram em melhor gestão às Polícias Civis, em sua totalidade prejudicadas em inúmeros Estados por sucateamento deliberado, desinvestimento, interferências inúmeras em sua atividade-fim que deveriam ser objeto de rigorosas apurações e de questionamentos veementes da opinião pública.
Frisa-se que em países com democracias mais avançadas , as Polícias Judiciárias não são submetidas ou agregadas a programas de Governo, mas a planejamento técnico, estratégico e científico, baseado em metas definidas em conformidade com a sociedade e atreladas ao interesse público. Justamente quando há maior submissão a interesses políticos ocasionais pelas Polícias, a democracia sofre riscos de fratura e desequilíbrios.
É de causar perplexidade setores que tanto advogaram autonomia da Polícia Federal e das instituições agora pugnarem, por viés totalmente pautado pela polarização política que macula a Nação, que as Polícias Civis continuem tal como estão – subjugadas a desígnios pretorianos de Governadores os quais, historicamente, ressalvados aqui louváveis exemplos , usaram e abusaram das forças policiais de forma ineficaz, irresponsável e até criminosa, bastando para tal uma pesquisa histórica em diferentes períodos de nossa combalida existência como país.
A sociedade brasileira merece uma Polícia Civil republicana, técnica , desvinculada de interesses políticos próprios e personalizados em mandatários de poder, pautada pelo interesse público e focada em sua atividade-fim: apuração das infrações penais e sua autoria, exceto as militares, tal como prevê o artigo 144, parágrafo 4° da Constituição Federal.
ADEPOL DO BRASIL